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O abraço de Séraphine

“O senhor sabe, quando me sinto muito triste, vou para o campo e lá toco nas árvores, falo aos pássaros, às flores, aos insectos, e juro-lhe que a tristeza me passa.”[1]

Quem viu o filme lembrar-se-á, com certeza, das longas pausas que Séraphine fazia durante as suas travessias pelo campo, as subidas às árvores, os banhos no rio.

Nesta tentativa de entender o mundo, ela persegue aquilo que não consegue compreender, sujeitando-se a pequenos momentos, a estar perto para perceber o que racionalmente está fora do seu alcance. Curiosa forma de estar com o mundo.

Logo no início do filme, surge-nos uma mão que tenta agarrar algumas plantas que bóiam num riacho. Talvez seja esta a grande tarefa de Séraphine - agarrar o que ela entende como único propósito da sua vida. Triste será, com certeza, este caminhar sem caminho ou, por outras palavras, perceber o indiscernível (palavra tão grata a tantos artistas). Mas não. Ela pinta, ela passeia, ela entende. Para quê tentar perceber aquilo que a razão não consegue conceber?

“Quien esté una vez en el bosque se siente cobijado”[2]

Assim como Séraphine, também eu encontro conforto no bosque, no campo, longe das pessoas. Apraz-me andar sozinho por aí, encontrar os meus Recantos[3], abraçar o que vejo, deixar que o mundo me entre pelos olhos dentro. Aquele mundo tão distante como o Jardim do Éden, que tantas saudades nos causa; saudade colectiva, numa frustração inconsciente por vislumbrarmos tanta presença, tanta apropriação, tanta transformação por parte do Homem. Talvez tenhamos que ser como a Princesa Mononoke e lutar pela nossa Floresta dos Deuses[4].

Também Séraphine caminha e depois pinta o que viu, não de uma forma literal mas aquilo que apreendeu. Assim faziam os artistas orientais e assim fazia Séraphine.

A cena mais emblemática de todo o filme é o abraço que Séraphine dá a uma árvore quando passeia pelo jardim acompanhada dos seus dois amigos. Ela aproxima-se de uma árvore, abraçando-a de olhos fechados. Séraphine abraçava literalmente a Natureza.

“- As suas flores são esquisitas, mexem-se, dir-se-iam insectos, rugas à volta dos olhos… Coisas que metem medo.

- Eu sei, Mme. Delonges. Às vezes, ao olhar para eles, também sinto medo do que faço.”[5]

Quando penso na morte, penso na sua medonha inevitabilidade. Inevitável será, também, deslumbrarmo-nos com a Natureza e pintar freneticamente como Van Gogh no filme de Akira Kurosawa. Deslumbremo-nos então com ela e deixemo-nos aterrorizar com a sua evidência! Tantas vezes nos deleitamos e outras tantas nos aterrorizamos. Assim eram os Românticos. Esta inevitável duplicidade, sentimento de deslumbramento e sentimento terrífico, leva-me a pensar na pintura de Goya, Duelo a Garrotazos. Sempre entendi esta pintura como se de um só homem se tratasse (independentemente de todas as explicações que se podem ler nos manuais da História da Arte), agarrado à maldita terra, lutando consigo mesmo, como se a luta o conseguisse libertar da sua inevitabilidade humana. Será que Goya também se assustava com as suas pinturas negras? Quando olho para as minhas pinturas, não me assusto, mas sinto-as, por vezes, tão arredadas de mim que me ocorre a passagem d’ O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro:

“O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

 Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”

 

Rui Algarvio
2011

[1] Séraphine, Martin Provost, Atalanta Filmes, 2009.
[2] Canetti, Elias, Masa y Poder, Madrid, Alianza/Muchnik, 1997, p. 80.
[3]  Em 2010 a minha exposição individual, na galeria MCO, intitulou-se “Otteveisktogen ou o Recanto dos Oito Caminhos”. No texto que acompanhava a mostra, referenciei um parágrafo de Kierkegaard que fala-nos na impossibilidade de encontrar um lugar intitulado Recanto dos Oito Caminhos.
[4] Princesa Mononoke, Hayao Miyazaki, Studio Ghibli, 1997.
[5]Séraphine, Martin Provost, Atalanta Filmes,2009.

 
 
   
Rui Algarvio
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O abraço de Séraphine (texto)
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